- Sentir dor deveria ser proibido. - Disse.
Hesitei. Pensei comigo mesma "Como sentir dor deveria ser proibido? Como os poetas viveriam? Como as coisas funcionariam?".
- Por que sentir dor deveria ser proibido?
- Nascemos para a felicidade. Nunca ouvi dizer que nascemos para a desgraça, apenas para sermos felizes.
- Quem disse isso? Isso não é uma lei.
- Claro que é! Chico disse isso por si próprio.
- No mundo dele, uma lei somente dele, isso não se aplica ao mundo real.
- Quem gosta de sentir dor? Por acaso você é algum tipo de masoquista?
- Eu não sei. Poetas sentem dor. Muita dor.
- Muita dor? Você quer levar vida de poeta?
- Sem dor não haveria literatura.
- Sem dor não haveria choro, isso é bom. Não gosto de me remeter ao fracasso.
- Nem sempre sentir dor é fracassar...
- Você é maluca. Quem é que gosta de sentir dor?
Outro trago no cigarro amarelado, um olhar profundo que explicava o vazio enorme que me consumia naquele instante. Suspirei, tentando encontrar uma solução, tentando afastar pensamentos, querendo descordar em concordar com essa coisa toda de dores-inúteis, acreditar que isso finalmente colocaria um fim a tanta coisa que se passa em minha mente.
- Sentir dor é tão normal, eu acho... Se não houvesse dor, não haveria felicidade... Qual a graça de desconhecer um sentimento ruim que pode ser substituído por aquilo que o homem tanto procura?
- Pra ser feliz precisa sentir dor?
- Sim. Se não, não seria felicidade. O que seria?
- Eu não sei. Algo vazio?
- O que você sente todos os dias se excluir a dor. Você ri, mas é inútil rir quando em um momento você nunca soube o que era chorar.
- Então talvez faça parte.
- Faz sim.
- Já foi feliz?
- Já sim. Também fui triste. Na maior parte do tempo, me sinto vazia, mas há sempre algo que faz com que eu me contente com o que eu tenho.
- E o que é?
- No meu dicionário, eles chamam de Bárbara, não sei como se chama no seu.
- E depois?
- Depois dizem que o sofrimento é proporcional a felicidade vivida, mas isso é coisa clichê do Federico Moccia.
- Não sei... Parece confuso.
- Confuso é encontrar alguém que coloca seu mundo todo de cabeça para baixo e, no instante em que você sente que isso tudo pode desmoronar, é como se não precisasse de princípios.
- Como assim?
- Perder algo que você ama... Chegar perto disso... Não existe dor que se compare a tantas lágrimas derrubadas por tanto tempo.
- E acha que isso vale a pena?
- Claro, no final das contas, talvez exista algo que possa fazer voltar... E se voltar, acho que é melhor ainda.
- Porque?
- Pois nem lágrimas explicariam a alegria de ter todo o seu ar de volta num momento de sufoco. É como se afogar num mar raivoso, com chuva e trovões, encontrar uma ilha, esperar a chuva passar... O sol volta, tudo fica bem.
- E ela?
- Eu espero, oras. Se o sol raiou, há esperanças de que ela possa voltar.
E ele sorriu. Talvez tenha entendido como me sinto diante de tantas coisas nesse mundo. Um sufoco que mata a alma, palavras que entopem suas veias, lembranças que vagam pela cabeça. A esperança que no fim, nunca acaba.
Archive for 2013
Um dicionário
Ácido
Sinto meu corpo boiar em uma banheira cheia de ácido.
Um amor meu, seu, só
Eu tive você naquele instante todinha para me dizer tudo o que eu nunca havia entendido antes. Seu olhar, seu jeito de me segurar, a lentidão com a qual se movia entre meus beijos, toques e desejos. A forma de me envolver contigo parece sempre mais gostosa quando estamos a sós, sem ninguém perceber que sumimos do mundo, ou que fomos levadas a outro planeta sem que ninguém escute nossos pequenos pensamentos.
Super herói
Quem nunca quis ser de titânio?
10 minutos
O trato fora o seguinte: 10 míseros minutos para que nós pudéssemos nos aproveitar. 10 minutos para qualquer coisa. 10 minutos para conversar ou dar uma volta de carro. Você no seu lado da cama, eu no meu, olhos fixos, encadeados por uma série de arrepios que tomam conta de nossa pele... Deveria dizer que éramos pura seda naquele momento? Ou apenas reflexo de vários pensamentos em uma materialização única?
Dançando tango em um céu com nuvens amareladas
Ultimamente, eu tenho andado assim. Meio sem saber pra onde, o que procurar, quais palavras utilizar. Abandonei os meus botecos, cigarros, mulheres das quais os nomes, nunca foram realmente gravados em minha mente. Andei olhando por outros olhos a realidade que eu gostaria de ter, ou pelo menos pretendia gostar de ter. Acho que me achei assim, um pouco solitária. Totalmente solitária. Um beco sem saída, sem tangos argentinos, sem bailes de máscaras.
Estou caminhando em uma corda bamba. Uma corda bamba que liga um oposto ao outro, uma ilha a uma nuvem, da qual eu posso facilmente cair e deslizar pelo belo céu azul coberto por água. Eu devoro a minha fome, o meu medo, as minhas apreensões, decepções com tudo o que está sacramentado em tinta vermelha na minha pele seca e rachada. Eu tenho tudo o que eu não deveria ter. Desmerecedora das pequenas coisas da vida, dos pequenos momentos, das pequenas pétalas azuis que cobrem o meu corpo nesse exato momento.
Eu deslizo.
Eu caio.
Uma curva.
Direita.
Esquerda.
Queda.
Alguns momentos para eu poder me levantar. Melancolia infinita depois de alcançar as nuvens e flutuar sobre as doces águas do oceano. Ou deveriam ser salgadas?
No instante em que perdi meus sentidos. No instante em que meus olhos se moveram procurando algo que nunca nem sequer existiu. No instante em que me perguntei o que havia de tão amargo no meu café de segunda-feira. No instante em que você apareceu diante dos meus olhos.
Eu apaguei.
Dormi.
Sonhei.
Acordei.
Pedi.
Mudei.
E no final de tudo, a razão de ter seu nome cravado em meu livro. Meu livro, meus olhos. Ter sua imagem desenhada em meu corpo, a sua pele tão sensível em sintonia com a minha.
A solidão que antes existia, que só piorou, que me faz querer tanto ter somente a você. A solidão que eu possuo, a solidão que você desconhece, a solidão que parece ser tão utópica.
Todas as verdades em caneta vermelha.
Sangue puro.
Puro suor.
Meu nome escrito.
Seu nome desenhado.
Sua mão na minha, seu sorriso junto ao meu.
Sua decisão de estar comigo.
Amor, é amor?
Eu disse que tinha medo de rodas gigantes
- Ter medo pra quê? Vamos! O máximo que pode nos acontecer é uma morte terrível e dolorosa. - Um tom de deboche acompanhou suas palavras cruéis. Eu, medroso, com problemas respiratórios, óculos de grau e meio metro de altura, já estava praticamente me atirando em qualquer beco que eu pudesse encontrar. Tinha dito a ela que odiava rodas gigantes, mas tudo o que ela faz é ignorar o que eu digo. Eu odeio altura. Odeio a tosse maldita que começou a me atacar. Eu odeio essa ferrugem.
- Pare com isso! Vamos subir! Estou animada.
- Vá sozinha! Não quero ir.
- Ora! Não seja medroso.
- Sou medroso, deixe-me em paz!
- Nada disso. Estamos juntos. Ou vamos ou não vamos.
- Então não vamos!
- Ainda não me convenceu!
E com suas mãos, me puxou pelos pulsos até a entrada da bendita maldita roda gigante. Aquela esfera pelo menos cinquenta vezes maior do que eu fez com que toda a saliva presente em minha boca sumisse rapidamente. Seus suportes estavam tingidos numa cor amarela que me lembrava urina, e suas cadeiras eram azuis. Parecia uma porra de uma roda gigante de patriotas, pois além do mais, possuía pequenos detalhes em verde.
Na fila quilométrica, haviam crianças de vários tipos. Das mais remelentas e catarrentas até mesmo as mais mimadas e irritantes. A excitação delas era perceptível e eu, por ter quase 30 anos nas costas, já estava me sentindo envergonhado por ter pavor de altura. De rodas gigantes. De uma bosta gigante. É exatamente isso. Mas ela insistia tanto que eu nem poderia dizer. Eu nem poderia contrariar.
Ao sentar minha bunda naquela ferrugem desgraçada e patriota, a esponja negra que habita meu corpo e que eu carinhosamente chamo de pulmão, passou a reagir. Os cigarros, apesar de serem deliciosos, haviam me deixado um belo presente. Agora eu não conseguia mais me aventurar sem tossir até a morte... Para isso eles valeram, mas não me salvaram de uma maldita roda gigante.
- Vai ser divertido!
- Diga por você.
- Você é tão rabugento... É por isso que não se diverte.
- Não venha me dar aulas de como me divertir. Eu preferia estar em casa lendo, fumando e bebendo.
- Sim, se afogando aos poucos na sua própria desgraça. Apenas tente se divertir.
Com um tranco, aquela coisa já estava rodando. O carrossel ao lado tocava uma música macabra que combinava perfeitamente com o ritmo que meu estômago seguia de descer e subir. Senti um certo sufoco, meus olhos se fixaram nas ferragens cor de qualquer coisa menos de ferro, enquanto a cadeira balançava conforme o ritmo do vento. Eu engolia em seco, ela sorria. A sensação era péssima.
Depois de chegarmos ao topo, seus dedos me cutucavam para que eu pudesse abrir meus olhos e enxergar a cidade inteira, que estava coberta de poeira pelo clima seco que fazia naquele inverno estranho. Meus olhos se arregalaram quando se depararam com a imensidão que estava abaixo de meus pés. O medo intenso se transformou em uma explosão de sentimentos que eu não pude nem ao menos lidar. A sensação de tê-la segurando minha mão me trouxe para a realidade e pude perceber que afinal de contas, eu nem estava tão perdido assim. As tosses pararam, o efeito de ser uma gelatina humana também acabou. Meus olhos se acalmaram, procurando os olhos dela para poderem se apoiar. No instante em que se encontraram, eu soube que poderia ser diferente. Engoli em seco e soltei sua mão. O medo voltou.
- Achei que você tinha superado.
- Não é tão simples assim!
- Não mesmo?
- Não.
Então, seus abraços envolveram o meu pequeno e gélido corpo. Nossas respirações se encontraram, e ela ouvia perfeitamente o som dos batuques do meu coração. Fechei meus olhos e deixei que seu abraço permanecesse assim. Encontrei motivos e razões para fugir, mas eu estava encurralado. Encontrei coisas pra fazer, dias pra contar, horas pra alterar, cartas para escrever, sentimentos para superar.
No final das contas, quando meus pés tocaram o chão e meus olhos se abriram, a minha surpresa foi maior. Ela ainda estava lá. Eu ainda estava lá. Nós nos olhamos e seus olhos, curiosos e questionadores, esperavam que eu dissesse algo mais produtivo dessa vez. Lhe ofereci o meu melhor sorriso e com dois passos, me levantei da cadeira, ajudando-a a se levantar. Quando caminhamos em direção a nossa casa, ela então quebrou o silêncio.
- Foi tão ruim assim?
- Não, nem tanto.
- E o medo?
- Ah, eu não sei.
Ela apenas sorriu. Eu sorri porque soube que naquele instante, ela havia descoberto que no fundo da minha carcaça enferrujada, o medo de rodas gigantes havia sido superado. Agora, elas não pareciam mais me assustar. Seus pedaços de ferro eram apenas uma maneira de explicar que não importa o que aconteça, se ninguém por a cara a tapa por nada, nunca vai aprender a viver. Eu pus por ela, ela continuou sorrindo por confiar plenamente no que eu estava lhe oferecendo. Se vai valer ou não, eu não sei, mas no final, vai doer como se fosse qualquer outra coisa e é assim que funciona... O mundo é uma roda gigante de espinhos, é só saber andar, balançar na hora certa e descer apenas quando seus pés encontrarem o chão. Fugir nunca é a solução.
Sobre bolhas
Certa vez, eu havia dito a mim mesma que embrulharia todos esses impulsos em um pedaço de papel de seda. Lacraria numa bolha transparente. Ignoraria as vozes que me implorariam para não fazer isso. Aceitaria o fato de que as coisas precisam ser assim. Inevitavelmente solitárias... Apenas para fazerem sentido.
Em uma dessas brincadeiras de bolha, eu havia quebrado o antigo vaso de porcelana que residia na janela de minha casa. Era um domingo, o sol que já estava a se por no horizonte, apenas me lançava um sorriso sádico. Meus pés se encontraram com os pequenos estilhaços deixados pelo vaso. Resquícios de uma vida inteira que havia acontecido, eu que era cega demais, tinha apenas oito anos, que eu havia destruído. Tudo por nada, um pouco pelo todo, a tristeza e a dor, que abraçavam e coloriam com orgulho todo o meu trajeto de volta para a casa. O trajeto que a chuva apagou. O trajeto que me deixou uma pequena cicatriz na planta do pé. Um desenho qualquer que não combinava com as meias de segunda-feira, que eram sempre azuis. Um desenho que se estendeu até meus braços. Um desenho que se tornou tão interno quanto externo. Cheio de vida. Cheio de nada.
Esse meu fascínio pelas bolhas acabou se apagando na medida em que fui crescendo. Os anos pesaram sobre minhas costas, as minhas verdades mudaram, as olheiras que não existiam passaram a ser cotidianas, meus olhos imundos passaram a ver malícias, minhas mãos sujas passaram a procurar outros tópicos, e todos os meus termos se desfizeram com um pacto que nem havia sido meu. Uma mentira feita por outros que se estabeleceu aos poucos na minha pele pálida e gélida. Mentira desastrosa, tão inútil, tão desnecessária, tanta coisa que poderia ter sido dita, tanto tempo perdido... E as bolhas continuavam a flutuar pelo meu céu de papel machê.
Então, num momento estranho e solitário, haviam bolhas adentrando pelas janelas do meu apartamento, pálido como eu. Invadiram o teto do meu quarto, mancharam os quadros antigos, marcaram a mesa empoeirada, me tocaram os lábios, me bagunçaram os cabelos, me coçaram os olhos, me limparam a alma. Fizeram uma pequena armadilha para que eu pudesse, finalmente, me livrar de minhas fantasias, de meus medos comuns. Dessas tristezas lançadas pela caixa que eu chamo de coração. Essas bolhas a levaram para bem longe e a partir daí, o meu mundo continuou sendo branco e preto... Sem melancolias, sem tristezas, sem lágrimas, sem sorrisos, sem amores, sem desamores... Meu mundo vazio, de paredes comuns, artes inexistentes, paixões antigas, verdades definidas.
Desde então, nunca mais as bolhas apareceram.
Deimos
Tudo fez sentido nesse instante. As coisas mudaram de lugar, a sensação estranha que me contentava antes, já parece fazer parte das minhas meias brancas que aquecem os meus pés. O sapato velho no canto do quarto ainda me serve. O chá ainda está quente, na panela. O leite derreteu-se com o tempo, o inverno abraçou os desalmados. O verão se tornou tão seco quanto o outono, e o cruzeiro do sul agora faz parte da constelação do norte. As poesias do Chico perderam as rimas, as vontades e desejos se tornaram ódio. Sentimentalismo extinguido, vontade substituída, indomável, apaixonantemente desastrosa. Vidas cruzadas, fogo de sereno, Luas em Marte. E você.
Desalmados
Minha pequena,
Quatro e quarenta e cinco
O telefone toca. Exatamente às quatro e meia ou as
quatro e quarenta e cinco, mas o telefone sempre toca. Minha mãe atende-o com
um sorriso estampado na face, seus olhos brilham com expectativas, que são logo
substituídas por uma leve dose de desapontamento. Ela diz algumas palavras, uma
conversa casual e rápida de nem trinta segundos e em seguida, grita meu nome.
Eu atendo o telefone. Sua voz me cumprimenta do outro lado da linha enquanto mordisco meu lábio esperando por algo. Nós conversamos, falamos bobagens, damos risadas e marcamos de sair. Nós nos despedimos após algumas horas e assuntos banais e voltamos para nossas realidades distorcidas. Você no seu mundinho, eu no meu, nada que não seja tão indiferente.
Chegamos no portão do seu condomínio. Você sorri enquanto o silêncio nos toma os espaços vazios. Eu digo algo, você dá risada, nos beijamos e fingimos que é assim. Prometemos outras coisas, não entendemos nada, apenas sentimentos, coisas que nem nós mesmas conhecíamos e nem procurávamos saber. Nós que somos um tudo e um nada. Nós que realmente nos amávamos ou coisa parecida.
Hoje em dia, o telefone já não toca mais. O telefone toca as quatro e quarenta e cinco, minha mãe o atende com a mesma expectativa e sorri radiante ao ouvir a voz do outro lado da linha. Não é mais para mim. Não é mais você e não existem mais conversas casuais de quem precisa falar com outro alguém. Eu não escuto mais você.
A sua voz nem me cumprimenta mais. Ela parece fugir dos meus tímpanos e correr para algum lugar aonde possa ser extremamente silenciosa e eu não possa precisar correr para encontra-la. Ela é só uma voz, ou talvez fosse apenas isso. Um ruído da minha cabeça, uma volta e meia, você e você, sei lá.
O final de semana ainda chega. Demora muito, mas acaba por chegar. Eu não te encontro mais. O nosso bar favorito fechou, a minha comida predileta já perdeu a graça, aquela cerveja gelada agora esquentou, o clima e o desinteresse pelos outros também se desfez. As risadas eu nem ouço mais, você me pedindo carona nem existe mais. Sua comida predileta saiu do cardápio e ainda sim, perguntam por você. Pela sua cerveja e pela carona.
O portão do seu condomínio agora tem uma cor bem diferente. Trocaram o porteiro, ele nem sequer sorri quando se trata de receber alguém por ali. O banco do passageiro está vazio, o vazio se tornou imenso e nem um beijo pôde nos selar a madrugada para continuarmos nossas vidas depois. As conversas sumiram, as promessas foram desfeitas, as vontades mudaram, os planos foram rasgados, as viagens acabaram por nunca existir. Nós que agora entendemos tudo, nós que agora sabemos de tudo, nós que agora fazemos questão de existir e quem sabe se entrelaçar nos espaços vazios das mãos dos outros.
Eu que parti, o cigarro que apagou a chuva, você que mudou, o uísque que nos queimou a saudade.
E eu... Que até pensei em conseguir, amei você.
Floresta de espelhos
Parando para pensar em tudo o que já poderia ter acontecido, encontro-me em um momento muito indelicado de minha estranha existência. Encontro-me querendo descobrir a verdadeira razão da tremenda fraqueza e estupidez do próprio ser humano. Encontro-me perdida em meus devaneios, com meus litros amargos de uísque barato, cigarros de terceira, e uma voz rouca depois de se cortar as pequenas defesas existentes em meu organismo pálido. Um gole para afagar os meus cabelos, outro gole para a inexistência das suas palavras sinceras.
Para minha pequena sorrir
Hoje talvez, o dia não tenha sido tão bom. Hoje talvez, você prefira dormir em silêncio ao ouvir pequenas frases feitas e clichês de uma canção para se suspirar. Hoje talvez, você não precise somente de um abraço, mas sim de um cafuné regado a muito café e poesias bobas para lhe arrancarem um pequeno suspiro. Talvez você não precise de nada, apenas do silêncio da madrugada. Talvez você queira assim.
Três pulos
Que seja por tudo ou por nada.
Engrenagens e essências
As vezes, quando a saudade é tão forte que não se pode nem ao menos guarda-la em um pequeno pote de requeijão, eu paro para pensar em como poderia projetar uma maneira bem simples e fácil de te ter sempre por perto.
Liras de um velho amor
Outono em Vênus
Enquanto a estranha madrugada de segunda-feira se aproxima e eu tomo um café já frio, talvez do dia anterior ou sabe-se lá de quando, observo algumas grades enferrujadas que formam uma pequena estrutura na sacada. Observo como se a noite fosse se tornar dia, como se tudo fosse desaparecer em um suspiro qualquer, ou em uma piscadela que vá me fazer hibernar pelo resto do ano. Não quando setembro chegar, mas sim quando outubro chegar... Ou novembro.
Ter você
Eu tenho você.
Eu tenho você dançando ballet no meio da sala de estar, com um blusão para dormir e as janelas abertas, deixando a penumbra da tarde invadir o seu corpo, como as arvores que cantarolavam as canções exatas, você sorrindo, seus compassos e giros, sua voz.
Eu tenho você.
Deitada na minha cama, abraçando o meu travesseiro. Rindo e contando piadas, de vez em quando apertando a minha mão e me encarando com os seus olhos negros que chegavam a me assustar. Você, rolando de um lado pro outro, com um sorriso e meio na boca, um copo na mão esquerda, um par de meias e suas roupas espalhadas pelo chão.
Eu tenho você.
Me abraçando apertado na hora de ir embora. Sussurrando verdades desfeitas em meus ouvidos, e respirando lentamente, a fim de embaçar os vidros do carro. Tenho seus dedos entrelaçados nos meus, sua apreensão, mistério, paixão e sentimento ensaiado. Três tragos de um cigarro, uma vodka quente, um conhaque argentino e você, novamente, sorrindo.
Eu tenho você.
Aonde não poderia ter. Tenho porque não tenho, mas gosto de pensar que tenho. Finjo ter. Finjo crer. Finjo rir para depois te ver partir. Tenho porque você quer que eu pense em ter, tenha a mim porque você quer ter a mim. Ou talvez não queira.
Eu tenho você.
Não porque quis, mas sim porque os caminhos sombrios me disseram que sim. Tenho você dançando ballet debaixo das lindas arvores de sakura, numa bela primavera japonesa, como eu sonho em ver, como eu quero crer. Tenho você ensaiando para um grande ato, com as pétalas rosas espalhadas pelos seus cabelos e corpo. Corpo da penumbra da madrugada, corpo do sol.
Eu tenho você.
Só a verdade de ser um pequeno romance ao qual me submeti.
Eu quero ter você.
De Março a Abril
Depois de uma longa discussão sem pedidos, decidi que iria escrever um conto de amor para você. Não precisamente sobre tudo, mas exatamente sobre o que eu tenho sentido por você, que já esta em minha vida, não porque quis, mas sim porque deveria estar.
Você não é uma libriana atipica. Adoro a sua mania de querer estar perto de mim, de me encher de carinho e fazer com que eu me sinta especial sem nem ao menos dizer muito, apesar de eu estar sempre querendo dizer coisas e mais coisas. Você simplesmente faz com que os dias se tornem mais especiais, você me deixa constrangida e sem saber o que dizer. Você me cutuca, me envolve, me atiça, me abraça, me morde e me abre um sorriso ou dois sem nem ao menos precisar dos meus. Você é tanto que eu nem sei.
É engraçado, porque sinto como se já não houvesse pouco tempo. Parece que tenho rolado contigo por tantos meses que pequenas palavras são desprezadas por nós. O necessário se tornou fútil e nossos sorrisos se tornaram únicos. Você se tornou a chuva dos meus dias de outono, o frio do meu inverno. Eu não diria sol, porque é clichê. Eu não preciso estar sempre quente para me sentir bem. Você é o oposto do que faz bem, mas é o oposto do que faz mal, dá pra entender?
Vejo você como algo diferente em meus dias. Vejo você como um complemento que eu sempre precisei, embora nunca tenha buscado. Ouço a sua voz como se não precisasse de uma música ou duas para me recompor depois. Escrevo-lhe poesia como se fosse algo banal, fácil de ser feito. Faço você da minha poesia, das minhas palavras, meus textos, a alma de tudo que eu tento expressar no momento.
A outra parte do meu Vênus. A principal causa do meu veneno, dos meus sorrisos, pensamentos bobos, coisas tolas que ensinaram-me a ser um pouco mais tolerável. As folhas abandonadas pelo vento de outono e meus olhos presos aos seus. Você que não se importa com coisas banais. Você que voa sempre de norte a sul. Você que sabe tanto e eu, que pareço não saber de nada.
Eu não entendo muito bem das coisas que você entende. Disse que ia aprender, apenas para sentir mais do que um pouco, o suficiente dos meus passos e a vontade do meu sentimento de estar perto de você sempre que puder. Eu apenas quero dizer que quero cuidar de você. Estar ao seu lado e me esforçar para sempre ver aquele sorriso tipico que eu tanto gosto. Quero aprender, mas quero você acima disso. Quero suas mãos e seus suspiros.
Pra que você, Bárbarela, continue completando os meus dias venusianos por muito tempo e eu, espero fazer o mesmo por você. Apenas tento e me esforço, depois a gente vê. Se a gente quiser, a gente tenta, se não, a gente inventa, assopra, da risada e tudo se acaba com belas taças de vinho e uma noite inteira só minha e sua.
Esse, então, é mais um conto de amor precisamente sobre o que você faz comigo. Indefinido? Talvez. O suficiente.
Retrovisor
Com todo esse aperto e esse calor insuportável, minhas pernas cedem e os meus três segundos contínuos de uma respiração ofegante, explodem em meu peito como se fosse uma bomba. Um sufoco fora do normal, uma sensação de estar tirando os pés do chão e um sentimento intenso de algo que não parece fazer sentido... Eu cega, perdida... De novo e de novo.
As vezes, me parece impossível querer enxergar o que não existe, pelo menos não dentro de mim, e fazendo com que tudo ao meu redor se tornasse um pouco menos confuso, aonde eu realmente pudesse crer em algo diferente, que pudesse fazer sentido, embora não faça nenhum e não haja nada que me diferencie dos outros. Apenas o fato de que gosto de estar sozinha.
Palavras me sufocam, conversas me destroem e os fatos não perceptiveis continuam a elaborar teses e teorias dentro de uma mente tão perdida em seus pensamentos. Pensamentos estúpidos, banais, pensamentos meus, trancados a sete chaves, que parecem ser apenas devaneios de experiencias frustradas e medos incomuns que chegam a tornar cada minimo erro, algo extremamente normal. Rasuras da vida, páginas rasgadas.
Elo quebrado. Ligações cortadas e vozes ao fim. Cada corpo em sua cama, fazendo planos que talvez nunca se realizarão antes de dormir, e acordar suspirando, imaginando e sonhando que o dia possa ser melhor. Que talvez tudo passe a fazer sentido, que as respostas existirão, mas que nada, nada mesmo, seria apenas uma hipótese de uma vida bem vivida. De argumentos bem feitos, uma vida maldita, destruída. Vida de poesias.
Vida de partidas e chegadas, desconfianças. Sentimentos e consciência estranha. Nada que pareça tão certo que não possa ser julgado, nada que não faça chover na manhã seguinte, e presenteie a noite com belas estrelas e um conto e meio pra se chorar. Nada que não traga sol em uma tarde de outono qualquer. Nada que não seja qualquer coisa que possa ser dita. Nada que possa ser prometido.
Então eu escrevo. Escrevo muito. Vivo essa eterna chuva de outono em cada pequeno segundo de minhas manhãs semanais. Respiro esse ar impuro, contendo veneno para me fazer repousar pela madrugada, apagando cada detalhe que esteve em minha mente numa noite anterior. Toco essa superficie sólida, que parece se desfazer quando minhas lágrimas se misturam com a tinta preta da caneta que me borra a pele.
A tatuagem apagada, as cicatrizes aparentes, as letras marcadas. Manchas de uma vida que poderia ter sido e nunca foi. Nunca será. Nunca entenderá.
Pele manchada de maio, chuvas e invernos sem fim... Abandonos, máscaras e bebidas... Todas por eternas noites assim... Vidas invertidas de retrovisor, cicatrizado e estilhaçado.
Conto sobre uma chuva de sábado
Tenho seus dedos entrelaçados nos meus neste momento, e me pergunto se você consegue ler exatamente o que meus olhos pensam em dizer. Se consegue saber que nesse momento distante, descrevo lentamente os seus cabelos e percebo o seu calor, junto ao meu, embaçando os vidros do carro nessa noite chuvosa de sábado. O sábado em que eu provavelmente não lhe veria, mas cá estou, pensando sobre você.
A chuva está bem fraca do lado de fora, eu penso em loucuras e te proponho uma pequena viagem. Você aceita, e se encolhe cada vez mais por conta do frio, mesmo estando confortavel com o meu agasalho favorito. Você sorri, muda de música e a gente continua falando besteira até chegarmos em algum lugar. Eu não consigo saber muito bem, mas provavelmente estaria feliz por estar aonde estou, mesmo que me falte uma cerveja e um pouco de besteira pra poder cantarolar, junto ao violão que eu abandonei em casa nessa tarde. Para onde vamos?
Você, enquanto ri, mexe em seus cabelos e me pergunta um pouco mais sobre tudo. Eu continuo dirigindo, ouvindo a chuva cair e a escuridão da estrada a nossa frente. Penso em tudo que poderiamos fazer, no tempo em que poderiamos gastar, atiradas em uma cama quente, com um cobertor, totalmente despidas e ofegantes, quase que acabadas. Você acendendo um cigarro e me oferecendo, a cerveja no criado suando tanto quanto eu, nós conversando sobre qualquer coisa e você, lentamente se aproximando e beijando o meu ombro, coisa que você sempre faz quando estamos juntas.
Penso na longa estrada, em um dia quente. O carro parado no acostamento, nada ao nosso redor a não ser areia e mais areia. O sol quase se pondo e nós duas deitadas no asfalto quente daquela estrada que nós nem sabemos como chegamos. Você segurando a minha mão, eu te olhando nos olhos, um beijo em seguida, algumas promessas bobas e clichês, a noite chegando, as constelações aparecendo e nossos sonhos sendo levados por pequenas estrelas cadentes, concebendo-nos o direito de sumir do mundo quando mais precisarmos.
Depois, enquanto ainda ouço sua linda voz sobrepondo as ameaças das gotículas geladas que caíam daquele céu tão escuro, quase que impossível de se atravessar, ignoro os trovões que insistem em iluminar parte daquele estrada, juntamente aos faróis daquele carro antigo, que eu ainda penso em dirigir mesmo sem segurança nenhuma, apenas com a certeza de que iremos chegar. A qualquer lugar e aonde você me pedir.
Quando a madrugada se aproximou e seus olhos demonstraram cansaço, dei um sorriso de canto e logo levei uma de minhas mãos até sua perna, que estava gelada por conta do vento gelado que adentrava, e a acariciei lentamente, enquanto via você adormecer ao meu lado. Meu sorriso apenas estendeu-se e pensei três vezes antes de chegar. Não queria pensar no fato de que mais cedo ou mais tarde, você teria que ir embora e eu, não poderia fazer nada a não ser esperar o tempo passar... Apenas pra ficar mais um dia com você ou mais algumas horas, andando por aí sem pensar em nada. Não queria não sentir o seu cheiro em minhas mãos, depois de te deixar em casa por mais uma noite. Não queria trocar de música, quando você colocou "janta" pra gente se beijar. Não queria nada, nada a não ser você. Por essa noite e por outras mais.
Gosto de te ver assim. De viajar com você pra lugar nenhum, segurar a sua mão enquanto sonha. De fugir para uma estrada que nem sequer existe, e lhe fazer rir a cada cinco minutos de viagem, apenas para ouvir e me sentir um pouco mais feliz.
Gosto de você assim. Poesia pura, curvas e retratos, atos e defeitos, vontades e desejos... Coisas que a alma implora durante horas ao seu lado, em direção a lugar nenhum.
Um conto sobre Camila e eu
Hoje, eu havia tirado o dia para relaxar. Havia deixado tudo de lado e estava com uma garrafa de cerveja em minha mão direita. Estava com as pernas esticadas, deitada no sofá enquanto mudava de canal frenéticamente porque detestava assistir a televisão, mas como eu realmente não havia encontrado algo melhor para fazer, estava lá, trocando os canais, ouvindo inutilidades, tragédias e piadas prontas para divertir barrigudos numa noite de sábado.
Sem dar muita importancia, ouvi a porta rangendo, avisando que agora eu teria companhia. Minha companhia, não era um cachorro ou coisa do tipo, tem gente que jura que por eu ser assim largada e cinica, teria apenas um cachorro latindo e defecando por todo meu apartamento, mas não, não é um cachorro. Até porque cachorros não conseguem abrir portas, pelo menos eu imagino que aqueles que moram em apartamentos não consigam.
- Cheguei... O trânsito estava um inferno hoje e... Pera! Você está bebendo? - Ouvi os passos se aproximarem e aquela voz estridente me estourar os tímpanos.
- Sim, hoje eu decidi pegar uma folga.
- Uma folga?
- É, uma folga. Quer uma cerveja?
- Não! Eu não quero beber com você em plena terça-feira! Amanhã eu trabalho! E até onde eu sei, você também.
Acenei com a cabeça apenas para parecer educada. Dei um sorriso de canto enquanto estendia minha garrafa em sua direção.
- Escuta, eu acho que você deveria beber um pouco! Tá geladinha.
- Eu já disse que não vou beber!
- Então não beba. - Dessa vez, me ajeitei novamente no sofá e continuei a assistir algumas inutilidades, enquanto dava longas goladas naquela cerveja tão suave, mas Camila era o tipo de mulher mal humorada que odiava sua profissão. Apesar de ser bonitinha, ela sempre dava um jeito de me incomodar.
- Ai, você não sabe! Estou tão cansada do trabalho!
- Sei...
- As vezes eu gostaria de matar esses clientes, sabe? Um por um!
- Entendo...
- Você está me ouvindo?
- Em alto e bom tom! Até agradeceria se você pudesse falar um pouco mais baixo. - E retribui com outro sorriso, dessa vez, irônico. Camila, emputecida comigo, apressou seus passos até o sofá, atrapalhando a minha visão, pousando com sua bunda grande e gorda em frente aos meus olhos, que estranhamente, passaram a arder, talvez pelo forte odor ou pela visão extremamente desagradavel.
- Você está muito engraçadinha pro meu gosto hoje! Pare já com isso e pare de beber! Isso faz mal!
- Ah, agora você virou evangélica? Pensei que ainda era católica... Pelo menos não implicava com a minha cerveja.
Vi aquele rostinho coberto por uma pele sedosa se tornar tão vermelho quanto as maçãs deixadas em cima da mesa. Camila tomou a cerveja de minha mão e atirou a garrafa na parede, enquanto se preparava para reclamar mais uma vez, de tudo e da sua vidinha de merda, a mesma vida de merda que compartilhava comigo todas as noites. Aquele sexo terrível e o cheiro de gambá que possuía, pelo menos quando baforava na minha cara de manhã.
- EU NÃO AGUENTO MAIS VOCÊ! TUDO O QUE VOCÊ FAZ É FICAR AÍ, VAGABUNDEANDO SEM QUERER SABER DE NADA! ESTOU CANSADA DISSO! VOCÊ NÃO SE ESFORÇA MAIS POR NÓS!
- Meu bem, quando foi que você percebeu isso?
- Escuta! Eu não sou NENHUMA dessas vadias que você vive comendo por aí!
- Acredite, todas essas "vadias" cheiram melhor e dão melhor que você. - Com isso, logo senti um impulso e senti uma superficie quente atingir meu rosto, deixando uma marca e um sorriso estampado na minha face, juntamente com uma leve sensação de ardencia, que me causou certo prazer. O sorriso que Camila detestava, e consequentemente, o sorriso favorito das "vadias" que eu comia por aí, já havia tomado conta de meu rosto por inteiro, indo de orelha a orelha.
- Camila, meu bem, eu nunca me importei. Só estava acomodada.
- Acomodada???
- Exato. Eu não tinha nada melhor pra fazer. Encontrei você num boteco, tão fodida quanto eu e decidi te trazer pra casa... Cê devia ser mais grata.
- Eu não estava fodida! VOCÊ ME FODEU! E EU NUNCA VOU LHE AGRADECER POR ISSO, SUA PUTA EGOÍSTA!
- Claro, eu te fodi de todas as maneiras possíveis... De fato, me arrependo de todas... E também gostei do elogio, obrigada!
- Estou indo embora! Já chega.
- Se quiser ajuda, é só pedir.
Enquanto ela me assassinava mentalmente, eu já não tinha muitas esperanças. Quando a vi sumir pelo corredor, em direção ao quarto para arrumar suas coisas, lembrei-me da sujeira que ela havia feito ao atirar a minha bela garrafa de cerveja na parede.
Levantei-me do sofá lentamente e fui até a região atingida, encontrando lá um bom pedaço de vidro quebrado.
- Bom, é melhor eu tirar isso daqui...
Um sorriso irônico era tudo o que eu vestia na minha face no momento em que aquele vidro já cortava parte da palma da minha mão. Dei um sorriso e fui andando pelo corredor até avistar o banheiro no final do mesmo, embora eu realmente tivesse muita vontade de ir até lá, virei o rosto para a direita, vendo a mesma bunda gorda de alguns minutos atrás, arrumando suas coisas com pressa, enquanto ouvia Camila fungar. Engraçado que isso fazia com que meu sorriso só se tornasse cada vez maior e com lentos passos, me aproximei dela, bem lentos e curtos, aproveitando cada milimetro em que eu pisava.
Quando me aproximei de suas costas e seus longos cabelos castanhos, ajoelhei-me para poder observa-la melhor.
- Camila, querida...
E quando sussurrei tais palavras perto de seu ouvido esquerdo, aproximei uma de minhas mãos até seu pescoço e com uma leve movimentação, passei o vidro quebrado por sua garganta, lentamente, abrindo caminho para o seu interior, rasgando-a, enquanto sentia aquele liquido quente tomar conta de minhas mãos, ouvindo sons inidentificaveis que eram liberados a cada leve carícia que eu fazia sobre sua garganta.
Sua garganta jorrava sangue, como se fosse uma bela fonte de vinho tinto, e logo vi que seu corpo, fora se debruçando sobre a cama, também manchada pelo liquido vermelho que insistia em sair de Camila. Dei apenas mais um sorriso e beijei sua linda nuca, que era a minha parte favorita de seu corpo.
- Durma bem, meu anjo.
Abandonando Camila adormecida em minha cama, fui em direção a cozinha com o objeto ainda nas mãos, atirei-o na pia, passei um pouco de água em minhas mãos e peguei mais uma nova cerveja, apenas esperando pela manhã seguinte, aonde eu teria que ir trabalhar e provavelmente colocar Camila na churrasqueira para mais um final de semana contente.
Três quartos
O relógio marcava três horas da manhã. O sono, que antes habitava o ambiente, já havia sido trocado por uma longa insônia e gotas de suor que escorriam de sua face. Seus olhos pestanejavam lentamente tentando ajustar o foco de sua visão, que fitava um canto qualquer de seu quarto escuro. A janela estava aberta, o vento entrava lentamente enquanto o Rio de Janeiro parecia estar em silêncio.
Seu olhar fora de encontro com o céu escuro lá fora, enquanto seus dentes mordiscavam o seu lábio inferior, demonstrando uma certa apreensão. Suas mãos, agora apoiadas no colchão e seus pés que tocavam o chão gelado, faziam com que sua pele quente e suada, voltassem a sua temperatura normal. Não havia muito o que se fazer, apenas pensar no pesadelo da noite anterior.
Do outro lado da cama, não havia nada a não ser um travesseiro e uma parte arrumada dos lençóis que, por parte dele, já estavam bagunçados. Não havia nada a não ser a lembrança daquela menina numa noite de verão em que fumava o seu último cigarro. Conversavam sobre coisas banais, até mesmo sobre a estupidez da vida e trocaram sorrisos sinceros. Ela, que não tinha nada a perder e ele, que tinha toda uma vida para foder. Tudo se desfez, tudo se recompôs e num piscar de olhos, eles já estavam debaixo dos lençóis, ofegantes e sem respirar nada a não ser a transpiração um do outro, que assim continuou durante muitos e muitos meses.
Ele fazia o tipo seco, detestava admitir que sentia falta dela. A única coisa que passava diante de seus olhos agora era o simples fato do tempo estar voando, suas tatuagens estarem sumindo, suas cervejas terem se acabado e seus cigarros, há muito tempo, queimado o seu carpete da sala. Ele nem se preocupava em comprar um novo ou se recompor, ele apenas respirava os segundos que a vida insistia em lhe entregar... E nada funcionava.
De barba rala no espelho do banheiro, as quatro horas da manhã de uma maldita segunda-feira, estava ele com a expressão sonolenta de quem não se preocupava com o trabalho na manhã seguinte, e enxergava, com as pequenas mãos arranhando o seu peito, o mesmo olhar no espelho de cinco meses anteriores aquele e se perguntava, silenciosamente, se um dia seria capaz de trazer isso de volta.
Numa certa euforia, colocou o rosto para fora da janela para ver se conseguia respirar novamente, um ar diferente daquele que estava com o cheiro de seu suor, de sua nicotina. Olhou e observou, bem de longe, as ruas iluminadas e a beleza daquela cidade que ele tanto gostava, se não fossem por ocasiões como essa, afinal de contas, ele não tinha o porque de se sentir europeu, mas gostava do Rio.
Fechou as cortinas e voltou seu corpo para a cama umida que o aguardava. Deu três suspiros e com uma chama invisivel, mais um cigarro para apagar. A noite continuou, o dia logo amanheceu e o barulho da porta amorteceu o silêncio. Por horas, suas pernas não se moveram.
Mais um cigarro abandonado no cinzeiro preto de plástico que estava na pia do banheiro.
Ventos e maçãs
A insônia me consome. As responsabilidades despencam sobre meus ombros enquanto meus olhos continuam abertos. As vozes são músicas para a minha mente, enquanto que as memórias passam lentamente como um filme sendo rodado em camêra lenta. Eu não consigo adormecer. Eu não consigo parar de pensar em maçãs. Eu não consigo, por um momento sequer, tentar não pensar em maçãs. Tudo sobre as maçãs. Doces, pequenas maçãs doces cortadas ao meio, divididas por uma faca antiga. Divididas por uma dose qualquer de tristeza.
Eu digo maçãs porque maçãs são belas. Possuem um sabor suave, lento, neutro. São belas de se admirar, boas de se cuidar, deliciosas para se devorar. Penso em você como uma pequena maçã enfeitando as minhas tardes de outono. Penso em você como uma maçã que eu possa saborear lentamente, que não precise de tempo, que deixe o relógio desandar enquanto nos apreciamos lentamente. Penso em manhãs delicadas, frutas delicadas, sentimentos delicados, sua pele delicada e seu cheiro tão gostoso quanto uma brisa de primavera.
Então, como penso, lembro-me de uma determinada noite de sábado. A sua voz do outro lado do celular, eu pensando em tanto pra dizer, fingindo esconder, você cavando os meus segredos e me fazendo rir depois de um longo dia. Pensava em como gostaria de lhe encontrar, como faço algumas vezes quando posso tê-la em minha mente. Queria por um motivo ou dois, reivindicar as minhas palavras, as minhas fraquezas e admitir por inteiro o quanto você consegue me deixar sem nem ao menos o que dizer, limpando a minha mente de qualquer coisa racional que eu pudesse dizer, você compondo as minhas bobagens e eu, melódicamente, cantando-as no seu ouvido. Você e sua voz.
Aí então, vejo novamente por alguns segundos, aquele seu famoso sorriso libriano que eu tanto gosto. Aquela maneira engraçada que você tem de me olhar as vezes, como se pudesse me despir e desmoronar todos os meus muros, minhas proteções, e me afagar os cabelos como quem não precisava ter medo de se aventurar. E você se aventurava, se afobava junto a mim. Nós riamos e nos calavamos em seguida. Eu te queria e você, se deitava nos meus pensamentos enquanto fumava um cigarro e passava os olhos por mais um dos meus contos bobos pra você. Você sorria e eu, também.
Olhos intensos. Eu percebia e te olhava como se não pudesse encontrar um fim para aquele olhar tão sincero que você me lançava nas noites de sábado. Olhar que me prendia a alma e me calava as palavras secas, depois me torturava lentamente como se soubesse o que queria. Depois, vinha acompanhado de um imenso sorriso. Esse sorriso que eu tanto gosto! Essa pele quente que eu tanto quero e esses lábios tão belos quando tocam os meus. Quero você por inteira. Por uma noite ou três, por quantas noites você quiser.
Quero sua voz, o seu corpo, suas curvas, suas mãos e seus abraços. Seus beijos, principalmente aqueles adocicados com Stella. Quero você como uma maçã. Doce e forte. Para lhe devorar os detalhes, sentir a sua textura e lhe cravar marcas de uma noite quase inesquecível. Eu quero tanto.
Inclusive, quero seus papos. Suas risadas harmonicamente com as minhas e suas mãos para beijar e lhe sorrir um novo dia. Quero ser o seu refúgio e me aventurar ao seu lado enquanto a tempestade nos leva para um lugar qualquer, e depois, quem sabe, a gente se preocupa em voltar para algum lugar.
Eu quero velejar ao seu lado, Bárbarela, lentamente como as vozes do vento cantam as canções da noite.
Devaneios de domingo
Domingo a noite, véspera de feriado e a casa completamente vazia. A fumaça já se espalhava pela sala enquanto que com as luzes apagadas, pouco enxergo das paredes esverdeadas que me rodeiam e os quadros antigos, pintados e manchados com uma dose extra de sangue e dor. Paisagens fictícias de alguma cidade do interior da Irlanda, daquelas que nevam e possuem um nome quase impronunciável. Daquelas que eu gostaria de tomar um conhaque e me atirar na neve, congelar até parar de respirar e imaginar um céu de outono tomando-me as pequenas dores da vida.
As minhas únicas companhias são as pequenas garrafas de Stella, várias delas espalhadas pela casa e alguns maços de cigarro. O cheiro forte me asfixia enquanto a cidade começa a se silenciar. Tenho consciência de estar com os olhos abertos, embora quisesse escrever poemas clichês por todas as paredes e usar a minha pele tão seca como rascunho, para que as palavras ficassem cravadas em meus pequenos poros e eu nunca mais pudesse esquece-las. Como se fossem um juramento a mim mesma. As coisas mudam, o tempo passa, a noite se torna dia, mas a inconstância dos atos são as mesmas.
Enquanto o meu corpo se movia em cima do tapete cinza e empoeirado, a minha mente voava para longe e acendia as velas que estavam guardadas há muito tempo. Acendiam a chama que queimaria todos os meus profundos devaneios, sem nem deixar cinzas, sem nem deixar vestígios, e me afagaria os cabelos, os dedos e tudo que ainda me resta para suspirar. Eu estaria sem vida, embora não percebesse nada.
Levantei-me então. Apressei os passos até a cozinha, aonde eu procuraria por mais uma garrafa de cerveja e me deparo com a lâmpada quase queimada que, com um esforço grande, piscava lentamente, como em um filme de terror. Não iluminava quase nada, apenas piscava. Piscava como os segundos que se passavam, piscava compassadamente como bailarinos que dançavam em uma noite inteira, piscava como os meus olhos que a fitavam intensamente, piscava como no meu peito, haviam batimentos e eu, perdida em pensamentos, apenas pensava em piscar.
Reluzia, cintilava, piscava, eu pestanejava, tudo se perdia, eu me encontrava, nada fazia sentido, as cervejas sumiam, as garrafas se quebravam, os cigarros se apagavam, o tapete entrava em chamas, os quadros caíam e as noites não pareciam ir embora.
Eu. Abri os olhos. Abri os olhos. Eu. Não encontrei. Nem você. Nem as garrafas. Nem o cigarro. Nem o tapete. Nem a mim mesma.
Tarde chuvosa
E mais uma vez estou aqui, sucumbida, perdida no guia dos meus pensamentos estranhos e nadando entre as misturas aleatórias de rostos e faces que insistem me assustar. Persigo os seus olhos como quem tem cautela de viver, enxergo a noite como se fosse uma miragem e o dia, se põe novamente sobre esse imenso céu de veludo que cobre a cidade inteira com suas lágrimas de dor. Eu vejo muita, mas muita chuva caindo do outro lado da janela e o calor tão envolvente que parecia fazer evaporar todas as pequenas gotículas que repousavam sobre o vidro.
Eu ouço a vida me chamar. Ouço o eco das palavras repetidas por ela e apenas a ignoro, enquanto cada pequena esfera de luz da cidade se apaga. Os sinais ficam vermelho, as ruas se movem e os ratos invadem os mármores abandonados por todos aqueles que um dia já puderam respirar.
As flores são engolidas, o cheiro se torna podre. Tudo parece um caos, movido a uma pequena bateria de sentimentos inúteis que insistem em contradizer todos os pensamentos plenamente calculistas e arranjados. A vida se torna um software e os usuários a programam como bem desejam. As coisas clichês são cada vez mais reais e o mundo se perde em uma luz quase inexistente que se esconde apenas atrás de Plutão.
Quero voar, quero sair, quero tudo e ao mesmo tempo não quero nada. Procuro saídas de emergência, sinto o cheiro da fumaça e me asfixio com todos os seus componentes. Ela, no entanto, destrói os meus pequenos pulmões e transforma-os em duas esponjas podres, cheirando a esgosto e recheados de baratas. Ela me causa desejos alucinantes, vontades podres e perdidas. Sede de sangue, destruição em massa e todos os grandes estragos que parecem ser sutis ao meu ver. Eu sinto tanto e não enxergo nada, eu não sinto nada mas calculo tudo e é assim que acaba por funcionar.
Tenho uma vontade imensa, engulo cordas de aço como se fossem alimentos e meu sangue se torna cada vez mais escuro. Ouço a música e a parte sombria de seus desejos impossíveis de se entender algo ou a alguém e sinto a minha pele cada vez mais gelada, adormecer lentamente sobre a janela branca daquele apartamento com grades.
De vez em quando, eu ainda tentava abrir os olhos pra ver se o sol chegava, mas acreditar que a chuva caía sobre os meus ombros todos os dias, era pensar que em uma vida toda, se há chuva o suficiente, mas nunca houvera sol. Nem por três segundos sequer.
Yuki
O balanço dos pequenos guizos pendurados em suas vestes. Seus cabelos, presos, num segredo que nem os seus suspiros mais obscuros poderiam contar. Olhos brilhavam quando os pequenos flocos de neve gelada passaram a tocar seu rosto, pálido pela maquiagem, belo pelo inverno, assustado pelo destino.
Suas mãos, movimentavam-se lentamente acompanhando o ritmo do vento, os guizos compunham uma canção e seu kimono balançava com os pequenos desenhos que a neve passava a se formar sobre o tecido. Seus lábios revelavam um sorriso, um sorriso tão frio que parecia se fundir com toda aquela agua condensada diante de seu pequeno e delicado nariz. Um sorriso de neve, um sorriso de batom vermelho.
Getas deixavam pegadas, um caminho longo traçado por ela em direção aquela árvore de sempre, mas que desta vez, não possuía nada além de longos galhos cobertos de algodão que abrigavam suas pequenas memórias em cada longa ponta. Ela não tinha muito, apenas uma aparência, uma máscara, um silêncio que já lhe era comum. Uns olhos sabe-se lá de que, mas que combinavam tanto com o cenário tão sem vida em que ela se encontrava. Ela esteve sempre alí e por um segundo sequer, pensou em se mover.
Os laços, presos aos cabelos negros como a escuridão da madrugada anterior, eram vermelhos ferrugem e possuíam algumas pequenas flores brancas perfeitamente desenhadas em cada espaço que alí se abria. De vez em quando, esses mesmos laços costumavam a acompanhar os guizos e os pequenos penduricalhos, também junto ao seus pequenos laços, dançavam com seus leques em uma harmonia infinita, roubando todos os olhares que por alí passavam. Seus detalhes, suas cores, seus instintos e seu corpo.
Quando a madrugada chegava e sua delicada pele se unia ao doce kimono negro, tudo parecia fazer sentido. Os movimentos lentos dos leques com kanjis espalhados, aqueles mesmos que compunham o nome das outras mulheres, se tornavam reais e como em uma mágica, feita especialmente para crianças, as palavras eram desenhadas no ar. Os contos eram formados a partir dos seus pés e seus pequenos braços sutis, que escondiam parte de seu rosto em algo que resolveu chamar de amor. Amor ou paixão. No caso dela, paixão e amor.
Depois, tudo se explicava. O sorriso nunca aparecia, toda noite era uma outra noite, seus amores e mistérios jamais desvendados, sua aparência tão melancólica e elegante, seu corpo jamais tocado, sua seda jamais arrebentada e sua carne composta de cicatrizes de um passado que ela mesma desconhecia.
Seu nome, ainda sim, era neve.