Archive for junho 2013

Sobre bolhas

 Certa vez, eu havia dito a mim mesma que embrulharia todos esses impulsos em um pedaço de papel de seda. Lacraria numa bolha transparente. Ignoraria as vozes que me implorariam para não fazer isso. Aceitaria o fato de que as coisas precisam ser assim. Inevitavelmente solitárias... Apenas para fazerem sentido.
 Em uma dessas brincadeiras de bolha, eu havia quebrado o antigo vaso de porcelana que residia na janela de minha casa. Era um domingo, o sol que já estava a se por no horizonte, apenas me lançava um sorriso sádico. Meus pés se encontraram com os pequenos estilhaços deixados pelo vaso. Resquícios de uma vida inteira que havia acontecido, eu que era cega demais, tinha apenas oito anos, que eu havia destruído. Tudo por nada, um pouco pelo todo, a tristeza e a dor, que abraçavam e coloriam com orgulho todo o meu trajeto de volta para a casa. O trajeto que a chuva apagou. O trajeto que me deixou uma pequena cicatriz na planta do pé. Um desenho qualquer que não combinava com as meias de segunda-feira, que eram sempre azuis. Um desenho que se estendeu até meus braços. Um desenho que se tornou tão interno quanto externo. Cheio de vida. Cheio de nada.
 Esse meu fascínio pelas bolhas acabou se apagando na medida em que fui crescendo. Os anos pesaram sobre minhas costas, as minhas verdades mudaram, as olheiras que não existiam passaram a ser cotidianas, meus olhos imundos passaram a ver malícias, minhas mãos sujas passaram a procurar outros tópicos, e todos os meus termos se desfizeram com um pacto que nem havia sido meu. Uma mentira feita por outros que se estabeleceu aos poucos na minha pele pálida e gélida. Mentira desastrosa, tão inútil, tão desnecessária, tanta coisa que poderia ter sido dita, tanto tempo perdido... E as bolhas continuavam a flutuar pelo meu céu de papel machê.
 Então, num momento estranho e solitário, haviam bolhas adentrando pelas janelas do meu apartamento, pálido como eu. Invadiram o teto do meu quarto, mancharam os quadros antigos, marcaram a mesa empoeirada, me tocaram os lábios, me bagunçaram os cabelos, me coçaram os olhos, me limparam a alma. Fizeram uma pequena armadilha para que eu pudesse, finalmente, me livrar de minhas fantasias, de meus medos comuns. Dessas tristezas lançadas pela caixa que eu chamo de coração. Essas bolhas a levaram para bem longe e a partir daí, o meu mundo continuou sendo branco e preto... Sem melancolias, sem tristezas, sem lágrimas, sem sorrisos, sem amores, sem desamores... Meu mundo vazio, de paredes comuns, artes inexistentes, paixões antigas, verdades definidas.
 Desde então, nunca mais as bolhas apareceram.

Leave a comment

Deimos

 Tudo fez sentido nesse instante. As coisas mudaram de lugar, a sensação estranha que me contentava antes, já parece fazer parte das minhas meias brancas que aquecem os meus pés. O sapato velho no canto do quarto ainda me serve. O chá ainda está quente, na panela. O leite derreteu-se com o tempo, o inverno abraçou os desalmados. O verão se tornou tão seco quanto o outono, e o cruzeiro do sul agora faz parte da constelação do norte. As poesias do Chico perderam as rimas, as vontades e desejos se tornaram ódio. Sentimentalismo extinguido, vontade substituída, indomável, apaixonantemente desastrosa. Vidas cruzadas, fogo de sereno, Luas em Marte. E você.

Leave a comment

Desalmados

 Minha pequena,


 Há muito tempo vago sem palavras para tanta movimentação nesse meu mundo tão inconstante. Tudo tem sido muito claro, com uma obscuridade quase que imperceptível, e nos tornado parte de algo que antes não fazia parte de nossas poesias. Das nossas políticas, dos nossos cigarros, cafés, assuntos banais de um sábado a tarde. Um mundo com diversos novos dialetos passou a reinar o nosso pseudo-estado, nos transformando em criaturas ferozes, famintas, estranhas e desconhecidas. Nós que não andamos mais descalças pelo chão de areia movediça desse nosso eterno deserto de almas abandonadas. Vazias. Pálidas.
 Tantas palavras foram riscadas nesse pequeno rascunho que já está ficando curto para se tornar uma carta. Esse pedaço de papel manchado com cerveja, um pouco de café nas pontas, um cheiro insuportável de boteco e de vômito rodeando os meus sentidos. Você, que é parte do meu eu tão desalmado. Você, de quem eu sinto falta nas noites de outono em minha casa abafada em plena capital Mato Grossense, sem sentido algum de viver e respirar tanta aridez que insiste em bater na minha janela exatamente às três da manhã. Eu, que nem sou mais poeta. Que te abandonei pra lá. Que te afastei assim. Que te quero. Que te amo.
 Apesar de tanto, eu entendo que há muito que eu gostaria de fazer para estar ao seu lado. Vou fazê-lo. Vou me esforçar. Sou de palavras concretas, discretas, um pouco de malícia para um mundo inteiro de sentimentos ardentes e gélidos. Como invernos Russos ou coisas parecidas, mas que não se comparam ao que acontece naquela parte do meu peito vazio aonde vive um pequeno ser chamado "coração". Coração de desalmados. Coração de pessoas solitárias que escrevem cartas de amor para uma certa menina que mora na saída da cidade. Você. Eu.
 Olha, menina dos olhos cor de amêndoa, és um pedaço e uma parte daquilo que chamo de poesia. És um poema belo, composto por uma simplicidade e trezentas ambiguidades para agradar a qualquer poeta frustrado. És um terceto, és música, melodia, um livro, um personagem navegando pelo mundo desconhecido de três magos, um pirata, uma princesa e cinco dragões vermelhos que sobrevoam os pequenos vilarejos, que dessa vez, não possuem um herói de armadura branca, mas sim, uma pequena donzela de cabelos negros e cacheados, disposta a conquistar o reino para lutar por suas palavras.
 Você, minha heroína, coberta de ouro com ametistas espalhadas pelo corpo, é uma parte do meu fogo gélido que me queima as retinas, me cegando caso esteja longe desse pedaço de não-alma que sou. Sou você, você pode ser eu, nós somos o que somos, temos o que temos, lutamos pelo que queremos e o mais importante: Encontramos o deserto do nosso profundo desejo de encontrar um amor em comum. Nós, que vivemos de amor. Eu que amo você e nada menos.
 Agora, me despeço. Uma boa vida e um bom silêncio para nós, pequena.
 E claro, toda a felicidade do mundo.

 Do seu eterno,
                           雪

Leave a comment