Era 1930, a neve caía com certa intensidade na times square enquanto eu observava um cadillac v-16, preto, andar lentamente pelas ruas brancas, num eterno brando, cobertas pela substancia gelada que também cobria meus sapatos. Usava um chapéu panamá preto, que combinava com o meu sobretudo e com o meu terno, que era tão sedento quanto eu. Acendia um cigarro, um marlboro e não consigo me esquecer, a fumaça subia e o movimento continuava intenso.
Andei um pouco e finalmente pude encontrar o bar de Moretti, que estava cheio de almas solitárias, como a minha, que usavam seus olhos para outros males que talvez nem me importasse muito, entretanto, estávamos todos afogados no mesmo copo de whisky, sim, o mais barato que tiver ou talvez o mais caro do cardápio.
Fui até a porta dos fundos, alguns me olhavam de forma curiosa enquanto eu os encarava com tamanha frieza, dessa forma, nem parecia ser um homem vazio, infeliz pra caralho, em busca de qualquer merda que me tirasse dessa vida de bosta que eu vivia todos os dias.
- Onde estava? – Moretti me questionava sem rodeios, encarando-me de cima em baixo.
- Dando uma volta por aí. – Disse com o cigarro equilibrado na boca seca, com alguns cortes ainda abertos, porém cicatrizados.
- Tenho um trabalho para você.
- Outro? Para hoje?
- Sim, presentinho de natal. – E colocou aquela pilha de dinheiro em cima da mesa, dando seu famoso sorrisinho malicioso, soltando a fumaça do seu imenso charuto. Retribui da mesma forma mas claro, com meu cigarro barato.
O trabalho? Bem, era sujeira como todos os outros. Provavelmente matar mais alguém na mira do grandioso Moretti, que não tinha piedade nem de si mesmo, adorava se torturar com seus charutos enquanto os apagava em seu braço, grosso, com grandes pelancas, cheios de marcas de um passado que nunca se desvendou.
Subi em meu Chrysler 77 e fui a caminho do endereço que havia recebido. Instruções e todo aquele blá blá blá convencional, Moretti sabia como me entreter, sabia o meu tipo predileto de trabalho e sentia orgulho quando eu eliminava mais um individuo qualquer de sua lista negra.
Era um lugar familiar, uma casa meio abandonada em pleno subúrbio. Estacionei meu carro de qualquer maneira e saí calmamente, o chapéu escondia minha face que já estava um pouco misteriosa pela falta de luminosidade daquele lugar. A neve caía, o silencio pairava sobre aquele triste lugar, que se preparava para entrar em luto. Adentrei a casa rapidamente, sem mais delongas, tirei o meu revolver do bolso e fui seguindo. Ouvi um barulho de um rádio sendo ignorado, na voz de Louis Armstrong e logo pensei que seria um assassinato ao som de um ótimo bom gosto. Subi as longas escadas de madeiras, muitos degraus estavam quebrados ou rachados, tentei subir cuidadosamente mas mesmo com tanta cautela, quebrei vários deles, não conseguia controlar.
Na cama estava ela, adormecida, cabelos vermelhos não tão longos, meio ondulados, com algumas tatuagens espalhadas pelo corpo. Duas na verdade, já havia decorado como nunca cada mínimo detalhe daquele corpo que repousava. Os olhos fechados não demonstravam preocupação, mas pareciam pairar sobre os meus, traiçoeiros e mentirosos, que se iluminavam ao observar aquela cena, caindo em minha própria armadilha. A noite escura junto com a coragem que me faltava para apontar aquela arma. Eu conhecia aquele rosto, aquela alma, aqueles braços e aquelas mãos que já estiveram com as minhas e sabia de longe que o único destino que me traçava, era o que me assombrava.
Afobei. As lágrimas não caíram pois já haviam secado há tempos. Suspira rapidamente como um motor, continuo, em fase de testes e tentava persuadir aquela alma tão tranqüila que havia roubado a tranqüilidade e conforto de meu ser, tornando-me quem sou. Whisky barato, cigarro barato, espelho qualquer, olhos vermelhos e toda aquela nostalgia de bar.
Levantei o braço direito, apontei a arma para aquela cena tão pacifica. Pensei em destruir aquele silencio e apavorá-la antes de sua morte, cruel. Puxei o gatilho e em alguns segundos estava a pressionar para que desse o seu ultimo disparo. Escondi os olhos pelo chapéu e ainda pude ver aquelas doces mãos se acanhando, lentamente. Apertei.
...
O silêncio pairou sobre aquele lugar, haviam marcas de sangue por todo o quarto, tão vermelho quanto seus cabelos. Seus olhos curiosos e assustados observavam a cena, tão cruel e mórbida e a conclusão era a mesma: desespero. Havia alguém morto ali, colorido com as cores da vida, que acabavam de se tornar as cores da morte e era perceptível, teus olhos jamais esqueceriam aquela cena... Um mafioso que foi traído por sua própria arma e por seu próprio coração.
A neve caía, a rua continuava silenciosa e o Chrysler 77 preto continuava na porta a esperar, dessa vez, com a cor de luto como todas as luzes daquela cidade, que ouvia Louis Armstrong numa madrugada de natal em 1930. A madrugada dos olhos vermelhos e de um plano concreto de Moretti, que havia perdido o seu melhor pelo poder de um sentimento qualquer. Aquele que ninguém entende e que não faz sentido. Era apenas um inverno qualquer em Nova Iorque e uma noite feliz para qualquer um que estivesse tomando seu vinho na Times Square. Triste Nova Iorque.
Dedicado a Pedro Henrique F. Bergo.